A Natureza da Instituição Escolar

Catarina Esménio
Escola de Comércio de Lisboa | Assessora de Direção

Mudar a Natureza da Instituição Escolar

– uma alegoria a duas vozes

 

A pessoa – o primeiro nível de realidade

Veio-me à memória o José. Ou seria o António? Talvez até fosse a Maria…Oh, lembrei-me de ti… Daquele ser único que tenho à frente quase todos os dias, há tantos meses, há tantos anos! Alguém que é rico por tudo o que viveu, tudo o que testemunhou, pelo tempo que o fez e onde o fez. Alguém com história, com sonhos, com voos imaginados e saltos projetados. Uma riqueza imensa que grita individualidade, com todo o seu sentir e com toda a sua razão.

A Diferenciação

E, por isso, digo “Bom Dia!” de coração grande, indicando o tom que este instrumento me sussurra, não me deixando abater pela imensa responsabilidade de toda uma orquestra, que parece pedir uma só peça, mas antes, lembrando-me como esta orquestra brilha quando deixo os instrumentos livres para seguirem a sua partitura. Não a minha, a que tenho trazido comigo este tempo todo e de que gosto tanto… e que é tão bela… Não!… Nem a do piano, que é tão cheio de personalidade e que pede uma só para ele… oh, nem a do bombo, que parece estar sempre tão sério e que às vezes nem fala. A tua! A que te faz tocar como quem se desprende de todas as suas amarras para finalmente se descobrir.

A singularidade (!) perante uma escola que não é neutra

Quem diria, meu doce instrumento, que vinhas tu da dura e fria madeira? Nada de natural houve neste lugar que decidiste ocupar nesta orquestra. Que sonhos tinhas tu, meu pequeno instrumento? Que trazias tu nessa mochila invisível que te impeliu a lutar por mais, sempre mais e te trouxe até aqui, rompendo com o peso hereditário e contrariando o fenómeno social que te impedia de entrar neste sonho que se tornou realidade? Ainda me lembro das vozes que te disseram que nada havia de melódico no teu tom, corrigindo-te uma e outra vez e negando todos os saberes que já tinhas adquirido; ou mesmo aquelas que nem se apercebiam que te abafavam pela forma como interagiam contigo… E assim te nasceu essa força para rasgar a veste que te carregava para a tradição e hereditariedade e logo voaste… para ocupar um lugar que ninguém dizia ser teu!

E progressivamente te apropriaste de todos os códigos, salamaleques e tons, como se sempre os tivesses chamado pelo nome, abrindo horizontes e universalizando-te…

 Ah, como soubeste fintar o instituído! Bourdieu haveria de ter aplaudido!

 Uma riqueza imensa que grita individualidade, com todo o seu sentir e com toda a sua razão – um “percurso individual em situação coletiva” (Perrenoud)

Foste crescendo no teu grupo de instrumentos, cada vez mais seguro, confiante na aprendizagem partilhada e construída com quem fulgia a tocar pela mesma partitura até chegar o momento!

E, de repente, todos nós levantamos voo, as cordas, as madeiras, os metais, a percussão, cada grupo de instrumentos com as suas notas ou símbolos próprios, mas tocando uma só peça, em tons que se complementam na sua diferença para formar uma só melodia, agora não a minha, não a tua, mas a nossa composição, para criar o nosso “lugar de dança”!

Da pessoa e do grupo à organização e instituição | as desigualdades escolares e sociais interiorizadas…

A nossa orquestra. A orquestra da Casa do Povo, essa Casa…!

E já nos conhecemos tão bem! O todo com a sua hierarquia tão definida! Cada secção com um solista que lidera as restantes. O violino principal, a cabeça, não só de toda a secção de cordas, mas de toda a orquestra, faz a vénia somente ao maestro que a conduz.

E assim se fecham os olhos para ouvirmos contar uma história em colcheias, mínimas e semínimas, silêncios e suas ausências, reinando a paz, porque todos sabem o seu lugar e a sua função, o seu tom, desde o pequeno triângulo que quase nem é chamado a este festejo, ao triunfante e insinuante principal.

… para regressar à pessoa ou
à recusa da indiferença às diferenças

Quase parece que não estamos lá, tão habituados estamos em ser orquestra, em ser o todo, mas é cada um, com a sua contribuição mais ou menos grave e aveludada, com o tom encorpado por tudo o que viveu, que faz acontecer. É pela riqueza e especificidades de cada um que sentimos aquela magnitude melódica do todo a ecoar em cada poro.

… reinando a paz, dizia eu?…

Ah, como gostava eu que esta Casa visse mais como tu, fizesse mais para haver como tu… mas os anos passam e a tradição mantém-se de pais para filhos e replica-se o que se viveu outrora.

 

Qual é a sua graça?

– Conservadora, Maria Conservadora. – responderia.

Ah, como gostava eu de ver mais como tu, que desafias as regularidades deste mundo, e fizesse mais para haver como tu, recusando-me a ser mais uma peça que reproduz as desigualdades e cega perante a diferença. Não as posso resolver, mas posso atenuá-las, romper com a escola que vivi, qual grito que agita o conservadorismo instalado!  

 

Um mundo em transformação – que escolhas

E nesta imensa revolução acerca da forma como pensamos de nós próprios e sobre como estabelecemos laços e ligações com os outros (Giddens) eu escolho querer fazer mais. Posso fazer mais! Quero ir para além da minha orquestra… da minha turma. Ir para além das minhas margens de liberdade e sair da minha sala de aula! Seguindo a voz de Paulo Freire, afirmo que aprendi e aprendo para agir, para transformar! Quero mais, posso mais! Não almejo ser formiga no carreiro que vem em sentido contrário, mas também não tem que assim ser… Podemos mais! Somos tantos…

 Urge atuar! Querem fazer mais comigo? A Escola pode ser diferente!

… E em que tom tocavas tu? Deixa-me ver se me lembro…

 

“A impotência que sentimos não é sinal de qualquer fracasso pessoal, reflete apenas a incapacidade das nossas instituições. Precisamos de reconstruir as que temos, ou de as substituir por outras. Porque a globalização não é um incidente passageiro nas nossas vidas. É uma mudança das próprias circunstâncias em que vivemos. É a nossa maneira de viver atual.”

in Giddens, Anthony, (1999). O Mundo na Era da Globalização

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